ESCREVER É SONHAR


                              *Vencedor do Prêmio Maria José Maldonado de Literatura 2019.


          Começa a entardecer e tenho a terceira crise de ansiedade. Aproxima-se a hora marcada com a jornalista que irá me entrevistar. Devoro um pote de creme de avelã e fico com medo de ter dor de barriga durante a sessão de perguntas. O que gera a quarta crise. A primeira tinha sido ao me deitar e ficar encarando o teto sem conseguir dormir imaginando o que poderia ser perguntado e quais respostas daria. A segunda foi ao acordar ainda sonolento após a impressão de ter apenas cochilado e não repousado uma noite inteira, o que me ajudaria a ser uma pessoa menos ansiosa. Caminho em passos lentos da cozinha para a sacada da sala de estar como se o arrastar de meus pés no piso de porcelanato gelado tivesse o poder de desacelerar o tempo. Agarro-me ao pote do creme ansiolítico como se comer proporcionasse alívio definitivo e não só imediato. Da minha vista do terceiro andar, olho para as pessoas, apressadas pela rua, alheias ao sol que se põe sobre minhas expectativas.  Um vento cortante de inverno leva-me de volta à sala e aconchego-me em minha poltrona preferida, onde já que não posso vencê-los, uno-me aos meus pensamentos.  
Amo escrever. As palavras me acalmam, mas toda a parte de divulgação me deixa agoniado. Entrevistas, fotos para jornais e revistas. Gerar conteúdo para as redes sociais. “Faz parte do kit, Bernardo!” – lembra-me a voz resignada de meu editor. Não entendo o porquê de tanta exposição do autor se o que, na verdade importa, é a sua invenção. Não é a obra que deveria ficar em evidência?
Sou escritor porque a arte me escolheu. Mas nem sempre o fui. Nem me lembro de algum dia ter desejado o ser. Aconteceu. Não sabia que uma dor podia ser tão intensa até perder minha mãe. A morte é estúpida e não sente. Se o espectro mortal sentisse a dor que causa, se declararia morto e estaria estabelecida no universo a vida eterna. O para sempre estaria garantido; mas o para sempre não quis minha mãe e a morte a levou me obrigando a conviver com sua ausência. E nunca uma ausência tinha se feito tão presente. E foi assim que me tornei um morto-vivo. E morto-vivendo isolei-me do mundo mesmo que rodeado de gente. Eu não me sentia gente sem a pessoa que me fez quem sou. E mesmo presente me fazia ausente. E talvez tenha sido para não enlouquecer que me surpreendi vivendo em um mundo paralelo entre a realidade e a ficção. Entre a oralidade e a palavra escrita, onde para realmente ver é necessário fechar os olhos.
Atualmente, vivo como se sonhasse e sonho como se vivesse. São mais vivos os meus sonhos do que muitas vezes o é a minha não sonhada realidade. Quantas vezes desejei que me acordassem do pesadelo de viver certos dias nebulosos. Dias nebulosos como nebulosas são as camadas imateriais dos sonhos. Sonhos que, às vezes, se concretizam deixando menos incorpórea a vida.
Vida que voltei a viver por meio das histórias, por mim, criadas. Sou o criador dos cenários, das pessoas, das tramas. Gosto da ideia de ser deus quando escrevo e de rir da cara da morte ao desafiá-la nas teias que teço. Sou o deus-aranha traçando o destino das personagens fictícias muito mais reais que muita persona de carne e osso.
Um bip do celular interrompe meus devaneios. Leio a mensagem do grupo de amigos virtuais do qual sou membro. É o anúncio de um café literário do qual não farei parte devido à distante localização geográfica.
A vida tem dessas ironias. Quem mais senão meus amigos, que me recuso a chamar de imaginários, me fazem companhia nas noites de insônia? Quantos cafés esfriam devido ao calor dos diálogos que acabam por adoçar minha boca e tirar dos meus olhos a amargura? Quantas risadas escancaradas e lágrimas derramadas? Lágrimas que pingam como chuva no dia branco ainda por nascer do papel pautado.
E qual será a próxima pauta? Quando me tornei um escritor? De onde vem minha inspiração? Se consigo escrever em lugares tumultuados? De qual das minhas histórias gosto mais? Se são autobiográficas? Questiono-me se errei ao não deixar isso claro em meus escritos.
Ouço o som da campainha estridentemente verdadeira. Levanto-me e ando. A claridade embaça-me a visão. Abro a porta que não me leva para o país das maravilhas, mas sim a encarar a jornalista em pé diante de mim. É simpática e cumprimenta-me com a calma naturalizada pela rotina de trabalho a ela imposta. Não tenho a mesma naturalidade. Sinto-me como em frente ao meu duplo num espelho. Tento um sorriso sereno, mas sei que falhei. A vida real é chata. 

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