FAMA É UMA ILUSÃO
Quando as
cortinas pesadas de veludo vermelho se fecharam, Ana ainda ouvia os aplausos. Eram
fortes, calorosos e ecoavam em cada metro quadrado daquele local que, para ela,
era sagrado. Tinha conquistado, com o seu monólogo, o tão almejado sucesso
profissional. Todo o tempo gasto na frente do computador preenchendo as páginas
em branco do Word com as falas que agora não sabia se eram mais de Manuela ou
dela mesma, tinha valido a pena. Enquanto encenava, sem dúvida, uma fusão entre
personagem e atriz havia ocorrido e Ana, de certo, não era aquela que, um mês
antes havia assumido o desafio de encarar, sozinha, o tablado que ainda sentia
sob seus pés descalços e o medo de como a plateia reagiria. Aquele friozinho na
espinha da estreia, ela sabia de cor. O que ela desconhecia era a angústia do
fim da temporada, mesmo que em todos os jornais, as críticas fossem só elogios.
E mesmo que algum crítico pretendesse destacar um ou outro ponto negativo,
seria abafado, já que "Apenas mais um dia" batia todos os recordes de
bilheteria do Teatro Quatro. Depois de noventa dias de ensaio e cinco fins de
semana com casa cheia, aquele era o último dia e, apesar de satisfeita, Ana
estava melancólica. Não era só uma nostalgia antecipada pelos dias de glória,
mas sim a crueza da vida que se faria mais real, agora que não precisaria mais
se ocupar com os pormenores da peça.
Os pés tocavam
levemente a madeira antiga, mas tão firme como poucas coisas na vida são e, com
passos lentos, numa tentativa de fazer com que aquele momento se prolongasse, dirigiu-se
ao seu camarim registrando cada detalhe existente por trás dos bastidores. A
tinta creme desbotada das paredes e o cheiro da madeira. A verdadeira essência
do teatro estava entre o palco e o camarim. Naquela transição entre o ser e o
não ser com aquele cheiro impossível de ser sentido em qualquer outro lugar que
não ali, na coxia. Parou diante da porta. Olhou seu nome escrito numa placa
fria de metal. Pôs-se a observá-la por algum tempo desejosa de guardar aquela
imagem na memória, assim como guardaria aquele cheiro. Entrou. O aroma lá
dentro era outro, uma mistura de detergente, frutas, frios e vinho. Tudo estava
limpo e bem disposto. Havia uma mesa coberta com uma toalha de renda branca que
lembrava as que, costumeiramente, encontrava na mesa de jantar de sua avó, mas
Ana não quis comer nada. Talvez bebesse uma dose do vinho do porto mais tarde.
Após uma leve batida na porta, ela deixou de se perder em seus pensamentos para
atendê-la e, Fernanda, sua assistente, entrou de uma maneira um pouco empolgada
dizendo que havia algumas pessoas em fila, com flores para ela. Ana as recebeu
com simpatia. Agradeceu as flores, tirou fotos, ouviu as mais diversas
declarações a ela e a seu trabalho. Fernanda se retirou para tratar das
questões financeiras e Ana, por fim, serviu-se de uma dose do vinho tinto que,
mesmo suave, não tirou o amargo de seu paladar. Era chegada a hora de despir-se
do figurino de Manuela e voltar para a vida real. Mas o que era real? Sentou-se
de frente para o espelho. Começou a
retirar a maquiagem. Quem era aquela que lhe encarava? Por que não seguia em
frente deixando que o tempo tudo curasse? A verdade era que não degustava o
sabor da fama. Sua vida não tinha o tempero que todos pensavam ter e até
invejavam. Apenas um dia bastava para mudar o rumo de tudo. Apenas mais um dia
com Pedro era o que desejava, mas a ausência do filho era real. O túmulo em que
semanalmente depositava flores era real. O quartinho ainda cheio das roupas e
brinquedos era real. As imagens da última festa com o número três enfeitando o
bolo de Bob Esponja era real. Que mesmo depois de quatro anos do acidente, ela
ainda não havia superado era real. O fato de que havia se entregado ao trabalho
como forma de não pensar era real. Seu menino era real. Sua vozinha infantil
num sorriso inocente lhe chamando de mãe era real. A arte podia tornar-se real.
A fama não. A fama era uma ilusão.
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